Giramundo vive, por Walnice Nogueira Galvão

Com largo prestígio internacional, Giramundo teve presença constante no circuito exigente dos teatros de bonecos mundo afora, que são numerosos e fortes.

Foto acervo UFMG

Giramundo vive

por Walnice Nogueira Galvão

Tempos atrás, a TV Cultura surpreendeu os usuários com lindas imagens, que demoravam a ser decifradas, já que eram diferentes de tudo que costuma aparecer na tela. Apresentava-se o teatro de bonecos Giramundo, de Belo Horizonte, encenando Cobra Norato, o poema modernista amazônico de Raul Bopp. Não tinha como não se impressionar com aquela serpente-monstro tratada com senso de humor, acossando o herói e repetindo um mantra enquanto se embalava de um lado para o outro: “VOU TE PEGAR vou te pegar VOU TE PEGAR vou te pegar!” – e assim por diante. Os índios do poema, em sua pintura corporal estilizada, entremeados aos animais exóticos e à exuberância da floresta amazônica, eram de uma beleza de tirar o fôlego.

Um dia o Giramundo veio a São Paulo com A flauta mágica, espetáculo feérico. Desta vez era no Theatro Municipal, com bonecos gigantes, mais altos que uma pessoa, encarnando as personagens. Manipulados por artistas cobertos de preto, como um ninja, moviam-se ao som da ópera, a deslumbrante ópera de Mozart. Cada vez que um boneco novo entrava em cena, ouvia-se um “oh!” de espanto feliz que os espectadores mal sopitavam.

Há bons teatros de bonecos pelo Nordeste, onde são populares. Há até um Museu do Mamulengo em Olinda e outro no interior de Pernambuco, que formam mamulengueiros. Mas mais para o Sul rareiam. O Giramundo é quase uma exceção, e desde que foi fundado em 1971 por artistas plásticos sob a liderança de Álvaro Apocalypse, teve altos e baixos, mas nunca abriu mão da exigência estética,  produzindo espetáculos de qualidade única, inspirados pela literatura e pelas artes.

E foram preservando os bonecos e os cenários de suas muitas encenações: imaginem o custo de manutenção de um material desses. Criaram um museu, com acervo de 1.500 bonecos de todas as 36 montagens – um tesouro. É só ver seu repertório. Depois de estrear com A Bela Adormecida e passar a outros clássicos infanto-juvenis, como Alice no País das Maravilhas e Pinóquio, ousou mais,  mostrando sua competência, em outras obras literárias, como Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne. Sem esquecer o estoque brasileiro:  afora Cobra Norato, As relações naturais de Qorpo Santo, O Guarani de José de Alencar, O Pirotécnico Zacarias de Murilo Rubião. O museu conserva os desenhos originais de Álvaro Apocalypse, com os projetos de bonecos desde a concepção, juntamente com as plantas e maquetes dos cenários.

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Giramundo mantém uma escola, que forma bonequeiros de vários tipos. Ali aprendem a lidar com fantoches de luva, títeres de vareta, marionetes penduradas em cordões, até bonecos gigantes sobre rodinhas controlados por uma complicada engenhoca na parte de trás, como vimos em A flauta mágica. No Nordeste os bonecos são chamados de mamulengos e em Portugal de bonifrates. Os lusos encenam peças de Antonio José da Silva, o Judeu, o brasileiro que pereceu nas fogueiras da Inquisição, em montagens com bonifrates de meio metro de altura, acompanhadas por um cravo ao vivo. Com sorte, é possível deparar-se numa viagem com As guerras do alecrim e da manjerona , “ópera joco-séria”, – referência a dois ranchos carnavalescos que se digladiavamem Lisboa, numa trama de amores juvenis contrariados.

Com largo prestígio internacional, Giramundo teve presença constante no circuito exigente dos teatros de bonecos mundo afora, que são numerosos e fortes. O fundador recebeu homenagem póstuma da Union Internationale de la Marionnette, na França, à qual já prestara colaboração com cursos, oficinas e vários espetáculos. E um de seus bonecos foi requisitado para participar de uma turnê internacional da Union, sendo escolhido justamente o lindo Pajé, de Cobra Norato.

Hoje sob a direção da filha do fundador, Beatriz Apocalypse, a pandemia fechou o Giramundo por um tempo.  Procurando reinventar-se e abrir novas trilhas, aproveitando o audiovisual, passou a fazer experimentos com bonecos misturados a animação e vídeo. Nossos votos são de que tão extraordinário grupo de artistas, com seu acervo de meio século que é um patrimônio da cultura brasileira, encontre seu caminho e continue trazendo sua contribuição.  Giramundo está aí vivo, para alegria de todos nós.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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