Agronegócio, sem indústria automobilística, não dá, por Luiz Alberto Melchert

Indústria e agronegócio são indissociáveis, mas o Brasil desindustrializou-se: até que ponto isso afeta a atividade no campo?

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Agronegócio, sem indústria automobilística, não dá

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A mídia costuma pôr o agronegócio e a indústria como polos opostos em nossa economia. Há mesmo quem atribua a pujança do meio rural a ideais políticos — e quem sofre com essa distorção é o País, com consequências imprevisíveis para o próprio agronegócio. Dá para imaginar uma economia agrícola como a nossa, dependendo de veículos importados para transportar 250 milhões de toneladas de grãos? Será que as 600 milhões de toneladas de cana de açúcar seriam competitivas sem que caminhões, bitrens e treminhões fossem importados?

Na virada para o século XX, com a chegada dos imigrantes, os fazendeiros montaram casas nas cidades e, aos poucos, usaram seu capital para se tornarem industriais. Isso atraiu empresários estrangeiros, contrariando a lenda de que todos os que vieram tentar a vida no Brasil chegaram amontoados nos porões dos navios. Houve, sim, quem já fosse rico e do mundo industrial entre eles. Famílias como Gerdal Johannpeter, Ermírio de Moraes, Hometto, Matarazzo, Jafet e muitas outras vieram para investir e foram muito bem-sucedidas, em especial ao se ligar ao capital oriundo do café. Foi então que o campo foi relegado a algo primitivo e de pouca exigência intelectual.

Dá para imaginar uma economia agrícola como a nossa, dependendo de veículos importados para transportar 250 milhões de toneladas de grãos?

Empresas como a brasileira Vemag, que fazia o trator TEK Ferguson, operavam um mercado agrícola e em franca expansão

Quando dois empresários encontravam-se na sede do Jockey Club, a conversa, invariavelmente, passava pelos filhos e era mais ou menos assim:

— João, como vão os meninos?

— Joãozinho está ótimo, é médico e já tem uma clínica enorme. Zezinho é engenheiro, montou uma empreiteira e está ficando rico. O Luizinho, coitado, não deu para o estudo e está tomando conta das fazendas.

Os primeiros itens de bens duráveis, porém, destinavam-se à agricultura, indo desde simples arados a carregadeiras de cana, em geral manufaturadas pelos imigrantes de segunda geração. Se as fábricas de componentes se destinavam às peças de reposição, as representantes de tratores, bem como de máquinas de terraplenagem, importados nacionalizaram-se e criaram uma cadeia de suprimentos capaz de sustentar a indústria de automóveis.

O Geia (Grupo Executivo da Indústria Automobilística), instituído no governo de Juscelino Kubitschek para incentivar a indústria, teve sua importância, mas sua viabilidade deveu-se ao que já existia. Havia milhões de hectares a plantar, milhares de quilômetros de estradas a construir e máquinas não podiam ficar paradas à espera de peças de reposição vindas do exterior. As brasileiras Vemag (Veículos e Máquinas Agrícolas) e CBT (Companhia Brasileira de Tratores) e as norte-americanas Barber-Greene e Caterpillar já operavam um mercado agrícola e de construção rodoviária em franca expansão, nas mãos de industriais que, aos poucos, foram migrando para o investimento em terras.

Indústria e agronegócio são indissociáveis, tanto que um dos grupos mais antigos com assento na Fiesp é a Apabor (Associação Paulista de Produtores e Beneficiadores de Borracha), cujo produto destina-se 80% à fabricação de pneus e outros componentes automobilísticos. O fato é que o Brasil desindustrializou-se, como visto em colunas aqui e aqui. Até que ponto isso pode afetar o agronegócio?

Escravos do tempo

Quem já viveu do agro, de uma forma ou de outra, sabe que somos escravos do tempo. Na Indústria pode-se escolher quando um investimento deve ser feito, mas na agricultura, não. Existe o momento certo para plantar, outro para cultivar e um terceiro para colher. As máquinas são usadas de forma igualmente sazonal. Plantadeiras usam-se no plantio e colhedeiras na colheita. Às vezes por um período maior, outras, por lapsos mais curtos, dependendo de se a máquina pode ser empregada em mais de um tipo de lavoura, o que não é muito comum.

Assim, existe uma rotina de manutenção, que se divide em três tempos: plantio, cultivo e colheita. Para o plantio, faz-se uma revisão pré-plantio, quando se trocam todos os fluidos, verificam-se todas as peças passíveis de substituição e fazem-se os ajustes que garantem que o serviço não pare. Na revisão de pós-plantio, afrouxam-se as correias, retiram-se as baterias e protegem-se os itens mais delicados, esperando a próxima safra. O mesmo acontece com as revisões de pré e pós-colheita, mas não com os pulverizadores e demais equipamentos dedicados ao cultivo e à logística de dentro da porteira, porque são usados o ano inteiro.

A agricultura brasileira, que está 20 anos à frente do resto do mundo, é uma verdadeira operação de guerra: trabalha-se 24 horas por dia, sete dias por semana

Para evitar a remoção das máquinas, trocas de óleo são feitas por caminhões-comboio, popularmente chamados de “melosas”, e pequenos reparos são feitos em oficinas e borracharias móveis. Resumindo, a agricultura brasileira, que está administrativa e produtivamente 20 anos à frente do resto do mundo, é uma verdadeira operação de guerra. Trabalha-se 24 horas por dia, sete dias por semana. Não há um segundo a perder e não se pode depender de uma logística internacional para suprimento de peças que, em mais de 80%, são compartilhadas com automóveis e veículos de carga dos mais variados tamanhos e missões.

Não se pode ficar a mercê de uma greve nos portos de origem ou de destino, tampouco perder dias por complicações de desembaraço de carga e ainda menos com os riscos de danos ou perdas em viagens transoceânicas. Um dia de atraso pode jogar fora uma safra inteira — sem exagerar. A cana-de-açúcar, por exemplo, tem um prazo de 12 horas entre o corte e o processamento, caso contrário, perde produtividade por começar a fermentar no campo. A soja e o milho precisam ir imediatamente para o secador e dali para os silos, caso contrário, ficam ardidos e sem valor comercial. Um caminhão carregado com gado não pode ficar parado à espera de peças. São bilhões de reais em jogo.

Se hoje temos um setor de que nos podemos orgulhar — apesar das estradas ruins e da falta de zelo de nossas autoridades —, é porque, ao longo do século XX, montamos uma indústria automobilística cujos braços acolheram a mecanização acelerada dos agronegócios. Ela é responsável pela maior parte do consumo de peças, que vão do mais simples parafuso à mais complexa peça fundida e usinada, sem contar com dispositivos complexos como sistemas hidráulicos e de freios que, se importados, seriam mais caros e de obtenção mais demorada e incerta. É hora de parar de procurar culpados e tratar de reconstruir a indústria que perdemos.

Publicado também no site Auto Livraria

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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