Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Tecnologia e as transformações no campo de batalha, por Eduardo Barros Mariutti

Os estudiosos da geopolítica também realizam estudos de conjuntura, adentrando na temporalidade fugaz dos acontecimentos

do Observatório de Geopolítica

Tecnologia e as transformações no campo de batalha: nota sobre Antoine Bousquet e Grégorie Chamayou.

por Eduardo Barros Mariutti

            O que hoje chamamos de geopolítica começou a se desenhar em uma época em que, por exemplo, não se diferenciava com clareza geografia de história, o que inclinava as análises para uma temporalidade mais dilatada, centrada na longa duração (Vidal de La Blache e, mais recentemente, Fernand Braudel são os exemplos mais óbvios desta característica). No entanto, sempre tendo como referência esse quadro temporal mais dilatado, os estudiosos da geopolítica também realizam estudos de conjuntura, adentrando na temporalidade fugaz dos acontecimentos (histoire événementielle), o tempo explosivo que “enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura muito, mal se vê a sua chama” (Braudel – História e Ciências Sociais).

            Algumas transformações importantes ocorrem também em uma temporalidade peculiar, mais acelerada que a lenta dissolução das estruturas, porém mais lentas que a cena política. Formam uma espécie de quadro intermediário, que ajuda a ligar a longa duração com a cena política. Utilizarei aqui The Eye of the War, um livro brilhante publicado por Antoine Bousquet em 2018 para explorar o impacto da sociotécnica nas transformações no campo de batalha desde o final do século XIX.

            Ainda persiste no imaginário público a percepção de que as guerras são decididas em batalhas capitais, onde um grande número de soldados se engaja em um combate acirrado até que um dos lados saia derrotado pelo adversário. Como já foi sugerido, esta imagem está cada vez mais distante do que efetivamente ocorre nos conflitos militares contemporâneos. Isto por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, por conta do maior alcance e letalidade das armas, as tropas ficam muito mais dispersas e ocultas, pois qualquer grande aglomeração de soldados sem cobertura e à vista do inimigo se torna presa fácil da artilharia e da aviação inimiga. O segundo aspecto é que a conduta da guerra se entrelaçou tanto com o conjunto da vida social que, hoje, é cada vez mais difícil separar a dimensão militar da civil do conflito.

            O surgimento dos rifles com balas cônicas em propelentes sem fumaça foi um aspecto decisivo na reconfiguração do campo de batalha. Além da lentidão na recarga, um mosquete fazia muita fumaça e tinha um alcance letal de cerca de 75 metros. Pressupunha, portanto, uma zona de contato muito estreita com o adversário. A fumaça dos disparos não só revelava a posição do atirador como recobria o campo de batalha, reduzindo a visibilidade, exigindo uma maior proximidade entre os antagonistas. Os fuzileiros da primeira guerra mundial podiam acertar alvos a 300 metros de distância, com uma cadência de tiro muito superior. Se somarmos a isto o apoio de metralhadoras e da artilharia com um alcance de até 20 quilômetros (fogo indireto), não fica difícil concluir que a distância entre os combatentes aumentou significativamente, assim como a necessidade de ocultamento e de cobertura contra o fogo inimigo. Desde então, o campo de batalha não parou de se transformar, tornando-se cada vez mais vasto e mais disperso, demandando armas com alcance e precisão cada vez maior.

            O que deve ser retido é que os novos armamentos favoreceram uma maior dispersão dos combatentes e, ao mesmo tempo, intensificaram a disputa no campo da percepção das forças em conflito. Frente a um fogo inimigo com alta letalidade e precisão, sem cobertura, qualquer grande concentração dos soldados seria dizimada com relativa facilidade. Além disto, pequenas unidades passaram a contar com uma grande capacidade de fogo, tornando-se capazes de gerar uma devastação que, com os armamentos antigos, exigiriam pelo menos um batalhão. Isto esvaziou o campo de batalha e obrigou as tropas a reduzirem a sua visibilidade, usando camuflagens e outras táticas de ocultamento. Ao contrário dos uniformes espalhafatosos que eram a norma pelo menos até o final do século XIX, a orientação dominante passou a ser tentar ficar invisível e, ao mesmo tempo, desenvolver técnicas de sensoriamento remoto para identificar as posições dos combatentes adversários e de seus apoios logísticos.

            Dada a capacidade de projetar dano devastador a longa distância, a capacidade de ver sem ser visto pelo adversário se torna uma vantagem decisiva. A Guerra Fria levou ao paroxismo este princípio, colocando no horizonte “uma guerra realmente global, que se manifestaria quase simultaneamente em todo o planeta, resultando em um único e frenético espasmo nuclear” (Bousquet). No entanto, à sombra de um eventual engajamento apocalíptico entre os EUA e a URSS, os grandes embates entre superpotências cederam lugar a conflitos mais descontínuos e espacialmente fragmentados. Conflitos armados geográfica e temporalmente bem definidos (i.é., com começo e fim claramente delimitados) são cada vez mais raros. O que se verifica hoje é uma condição muito mais indeterminada, nem guerra nem paz, marcada por surtos momentâneos de violência que se espalham pelo planeta, baseados em um imbricamento crescente entre os sistemas preditivos de vigilância e os dispositivos de projeção remota de dano.

            Precisamente por conta desta característica, Grégoire Chamayou (Teoria do Drone) afirma que estamos testemunhando a substituição do campo de batalha “tradicional” – onde quem ataca também pode ser atacado – pelo princípio da caça, contudo, isto se processa em um cenário em que, a princípio, a presa pode estar em qualquer parte do planeta, sem direito a nenhum santuário. Logo, se olharmos a questão do ponto de vista de quem é caçado, a questão de como funcionam os sistemas de vigilância é prioritária. Apenas mediante a compreensão de como opera o olho da guerra é possível aos caçados permanecerem ocultos, longe da mira dos caçadores. E a melhor forma de fazer isto é infiltrar-se na população, evitando marcadores e comportamentos que podem deflagrar alertas de risco. O paradoxo é que, quanto mais furtivo o “inimigo” se torna, mais se retroalimenta a lógica securitária que tende a despedaçar as liberdades civis e, ao mesmo tempo, abrir um gigantesco mercado colonizado pelas big techs.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

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O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

1 Comentário

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  1. A chamada guerra Russia/Ucrânia, na realidade é uma guerra mundial parcial. Na realidade, os dois principais contedores, são a Russia e seus aliados de um lado e do outro, os EUA e seus aliados. Embora o campo de batalha seja a Ucrânia, esta não passa de coadjuvante e troféu. Embora o início desta guerra tenha sido considerado no final de fevereiro de 2021, O seu início se deu no fim da URSS e com a reestruturação pela OTAN, leia-se EUA, do cerco, que até então, era contra URSS e passou a ser contra a Russia. Assim, para ser coerente com o novo cerco, a OTAN deveria mudar o nome para OTAR (ORGANIZAÇÃO DO TRATADO ANTI RUSSIA).

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