O Supremo Tribunal de Bungo: novo capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto, por Sr. Semana

Afinal, o pleno do tribunal acabara de afirmar a pertinência do foro cujo titular era o juiz julgado suspeito na decisão da segunda turma.

5.0.2

O Supremo Tribunal de Bungo: novo capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto

por Sr. Semana

“Atrás deixei narrado o que se passou [no Supremo Tribunal] nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo”,[1] com os votos, felizmente minoritários, favoráveis à contaminação mortal nos templos do reino, para que as necessidades espirituais dos fiéis e financeiras dos Bonzos não fossem limitadas por medidas sanitárias. Agora narrarei curiosa sessão do Tribunal ocorrida na semana seguinte.

O ministro Fox, presidente do tribunal, abriu a sessão fazendo a leitura da ordem do dia: trata-se de julgar recurso contra decisão monocrática do ministro Garfin que considerou inadequado o foro no qual foi condenado um ex-presidente. (Um ano antes da condenação, a centenária República de Bungo havia sido golpeada estabelecendo-se uma teocracia comandada pelos Bonzos.) A decisão foi tomada na véspera da sessão da segunda turma do tribunal a qual pertencia o ministro Garfin na qual seria julgada a imparcialidade do juiz que condenou o ex-presidente. Nesta sessão a maioria da segunda turma divergiu do relator, ministro Garfin, tanto sobre a questão de ordem por ele levantada que a anulação das sentenças tornava nulo o objeto do julgamento do dia, como julgando parcial o juiz que condenou o ex-presidente. A maioria da turma considerou que a atuação do juiz foi enviesada pelo interesse em retirar o ex-presidente da vida pública e assim favorecer a consolidação do poder pelos Bonzos. Segundo alguns cronistas da nação, o relator tomou a decisão monocrática somente para tentar evitar a condenação do juiz.

Na sessão do pleno do tribunal marcada para julgar o recurso da decisão monocrática, a palavra foi incialmente dada ao relator, o ministro Garfin:

— Excelentíssimo presidente, excelentíssimos ministros. Antes de julgarmos o mérito da minha decisão gostaria de levantar uma questão de ordem. Solicito que se julgue, previamente, a pertinência da decisão da segunda turma pois, data venia dos eminentes colegas de turma, julgo prejudicada a decisão que deferiu o habeas corpus impetrado pela defesa do paciente, considerando a perda de objeto resultante da minha decisão monocrática anterior.

O presidente colocou então em votação a questão de ordem que foi aprovada por 6 x 5. Em seguida colocou em votação a validade do julgamento da parcialidade do juiz pela segunda turma que foi anulada pelo mesmo placar.

Superada a questão de ordem e anulada a votação anterior da segunda turma, tratou da ordem do dia colocando em votação a decisão monocrática do ministro Garfin que anulou as condenações por inadequação do foro. A decisão foi reformada, com o restabelecimento das condenações, também por 6 x 5, sendo o voto decisivo proferido pelo próprio ministro Garfin, que justificou o seu voto contra sua própria decisão anterior com argumento assaz sutil: alegou só ter anulado monocraticamente as condenações por que este foi o entendimento, não seu, mas da maioria da segunda turma em casos análogos.

Um dos ministros da minoria observou que o julgamento da suspeição do juiz voltava a ser válido com a anulação da decisão monocrática. Afinal, o pleno do tribunal acabara de afirmar a pertinência do foro cujo titular era o juiz julgado suspeito na decisão da segunda turma. O sutil ministro relator retrucou:

— Peço venia ao eminente colega para lembrar que o Supremo Tribunal de Bungo se pauta estritamente pela legalidade formal. Não está em questão a parcialidade do juiz, mais clara do que a luz do sol, mas a legalidade formal da decisão tomada pela maioria da segunda turma. Quando a parcialidade foi julgada, o objeto havia sido perdido pela minha decisão monocrática que era inteiramente válida na ocasião. O fato da minha decisão monocrática ter sido reformada na sessão de hoje não retira a ilegalidade da decisão tomada pela segunda turma.

O presidente Fox pôs então em votação se a anulação da decisão monocrática restabelecia a validade da decisão da suspeição do juiz proferida pela segunda turma. Novamente por 6 x 5, com o voto decisivo do ministro Garfin, a maioria decidiu que não, reafirmando a anulação da decisão da segunda turma.

A imparcialidade do juiz foi assim restabelecida, a validade das sentenças restaurada, o ex-presidente tornado novamente inelegível e os Bonzos livres do único candidato que lhes poderia tomar o poder nas próximas eleições.


[1] Machado de Assis, “O Segredo do Bonzo: capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto” in Obras Completas em quatro volumes, organizada por Aluízio Leite, Ana Lima Cecílio e Heloisa Jahn, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, vol. II, p. 301.

Redação

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