Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Um contraponto ao discurso de Rosa Weber, por César Locatelli

Posições do jurista e filósofo do direito Alysson Mascaro contrastam com aquelas reveladas pela recém empossada presidenta do STF

Supremo Tribunal Federal

Um contraponto ao discurso de Rosa Weber

por César Locatelli

Rosa Weber, em seu discurso de posse como presidenta do Supremo Tribunal Federal, arrancou aplausos e cumprimentos pela firmeza de suas posições frente a regressão civilizatória e as ameaças à democracia e à liberdade vividas pelos brasileiros:

“Sejam as minhas primeiras palavras de reverência incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República, de crença inabalável na superioridade ética e política do Estado Democrático de Direito, de prevalência do princípio republicano e suas naturais derivações, com destaque à essencial igualdade entre as pessoas, de estrita observância da laicidade do estado brasileiro, com a neutralidade confessional das instituições e a garantia de pleno exercício da liberdade religiosa, de respeito ao dogma fundamental da separação de poderes, de rejeição aos discursos de ódio, e repúdio a práticas de intolerância enquanto expressões constitucionalmente incompatíveis com a liberdade de manifestação do pensamento, e de certeza de que sem um Poder Judiciário independente e forte, sem juízes independentes e sem imprensa livre não há democracia.”

Vivemos um momento de radicalismos tão extremados à direita que suas palavras soam bem vindas e nos levam a esquecer como chegamos a esse ponto. Por essa razão, é imprescindível recordar o que disse, no inverno de 2018, Alysson Mascaro, professor da faculdade de direito do Largo São Francisco, a propósito da crise brasileira e da sobredeterminação jurídica:

“A crise brasileira presente tem determinação econômica – com correlata repercussão política – e, por sobredeterminação, o direito. É no campo jurídico que se vem assentando o imediato da decisão institucional e, mesmo, da condução da governança política atual, na medida da proeminência obtida pelo poder judiciário, que sagra procedimentos, criminaliza, prende e protege suspeitos, conhece e desconhece situações e fatos, procrastina e acelera feitos, abala seletivamente partidos, empresas e governos.” (50)

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Para Mascaro, a novidade não é a participação dos membros do sistema de justiça na manutenção da dominação de classe, mas sua atuação como ponta de lança na execução da tarefa golpista de perseguir determinados dirigentes políticos e empresariais:

“A conduzir a crise brasileira contemporânea, o direito. Não se trata de um agente novo nem de uma mudança de sua incumbência, pois o direito modelou a alma política brasileira ao menos desde  o Imprério e a República Velha e é, desde sempre, responsável por garantir a exploração capitalista e a propriedade ao já proprietário, bem como por reprimir os indesejáveis, da escravidão até o atual direito penal. (…) Se o golpe de 1964 é representado pelo domínio imediato dos militares, o de 2016 tem à testa o direito. Do mesmo modo, o direito foi a retaguarda do golpe de 1964; os militares, a retaguarda do atual.” (52)

A Operação Lava Jato, para Mascaro, demonstra com clareza a elevação do grau de poder do mundo jurídico:

“Casos como o da Operação Lava Jato alteram a projeção do impacto decisório de alguns juízes, membros do Ministérios Público e policiais federais. Trata-se de uma mudança de grau do poder do mundo jurídico: antes decidia a vida dos desgraçados de sempre de uma sociedade exploratória e dominadora, no caso, pobres, negros, periféricos, aqueles sem acesso às articulações sociais com os dominantes; agora, decide também contra os membros selecionados e indesejados do mundo político e contra empresas nacionais e estatais contrárias a um dinâmica geral do interesse de frações do capital que dá as bases a partir das quais determinam sua prática e seu horizonte de mundo.” (56)

Mais adiante em seu discurso, Rosa Weber revela seu sonho para o sociedade brasileira:

“Meu desejo-esperança é que nas próximas comemorações tenhamos avançado na conquista do que a nossa Constituição aponta, em seu artigo 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil– a construção de uma sociedade livre, justa e solidária -a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.”

A justiça, para Mascaro, age contrariamente àquilo que Weber afirma ser seu sonho:

“Vive-se hoje no Brasil um golpe. Não se busque oniricamente o restabelecimento da ordem jurídica. O republicanismo, a legalidade e a democracia não são golpeados só de vez em quando: o Estado e o direito são o golpe. São a forma social pela qual o povo não toma o poder nem a condução de seus afazeres produtivos e suas posssibilidades econômicas diretamente nas mãos.” (66)

Continua ele:

“O poder judiciário ganha evidência no contexto de bloqueio a possíveis pautas progressistas hauridas dos próprios princípios constitucionais. Começando por temas dos costumes – casamento, aborto, homossexualidade, feminismo – que têm galvanizado a sociedade de maneira conservadora, alcançam-se as grandes questões política e econômica – intervenção estatal. Limitação do capital, controle do poder financeiro, democratização dos meios de comunicação, direitos sociais, juros, orçamento do Estado. (…) Por ativismo judicial indesejado acusar-se-á somente a hermenêutica mais avançada sobre os princípios constiticionais. As possibilidades interpretativas progressistas serão denunciadas.” (177/178)

A recém empossada presidenta alinha os pressupostos para a independência real dos humanos:

“Sabemos que a evolução da humanidade se dá em devir permanente, em processo dialético, em atualização necessária frente ao que a história apresenta. A independência real pressupõe desenvolvimento econômico, trabalho digno, fortalecimento das instituições, inclusão

social, valorização da ciência, educação e também cultura. Não esqueçamos a arte que, sempre necessária, é luz que dissipa as trevas, é paixão, emoção, beleza e, sobretudo, é liberdade.”

Ao que, Mascaro possivelmente contraporia:

“As lutas transformadoras não podem deixar de lado nem apenas tangenciar a crítica ao direito e à ideologia jurídica”. (61)

* Os trechos atribuídos a Alysson Leandro Mascaro foram transcritos de seu livro Crise e Golpe, Boitempo, 2018.

Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia

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César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

1 Comentário

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  1. “Palavras são palavras, nada mais que palavras”já dizia um comediante. Somente a fala tornou possível a mentira. Se todos fôssemos telepatas a mentira não existiria porque, na telepatia, a intenção do emitente chega antes da verbalização, assim, nada poderia ser escondido. Mas a maior parte da humanidade não se contentaria em viver na verdade, especialmente quando conhece o benefício imediato da mentira. Podemos fazer discursos bonitos, promessas idôneas ou mirabolantes sem nenhum compromisso firme de cumpri-los. O importante é ter mais credibilidade no que se promete do que no que se faz. Assim são as leis, assim é a política, assim são as instituições, assim é a mídia. A justiça, um ideal humano e senso genético presente em tudo que vive, vista na natureza como força compensatória de ação e reação, para o ser humano é benefício possível aos privilegiados: é para quem pode e não para quem precisa. Afinal, cada um abdica de parte de seu direito pessoal em favor do direito comum para tornar possível a vida em sociedade, onde quem pode o mais pode o menos. O judiciário é o fiel da balança, podendo dar mais ou menos justiça ao cidadão, na proporção de suas posses (dele) e não de suas necessidades , ou ainda, no interesse da manutenção das próprias instituições enquanto o poder da hora.

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