Um contraponto ao discurso de Rosa Weber
por César Locatelli
Rosa Weber, em seu discurso de posse como presidenta do Supremo Tribunal Federal, arrancou aplausos e cumprimentos pela firmeza de suas posições frente a regressão civilizatória e as ameaças à democracia e à liberdade vividas pelos brasileiros:
“Sejam as minhas primeiras palavras de reverência incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República, de crença inabalável na superioridade ética e política do Estado Democrático de Direito, de prevalência do princípio republicano e suas naturais derivações, com destaque à essencial igualdade entre as pessoas, de estrita observância da laicidade do estado brasileiro, com a neutralidade confessional das instituições e a garantia de pleno exercício da liberdade religiosa, de respeito ao dogma fundamental da separação de poderes, de rejeição aos discursos de ódio, e repúdio a práticas de intolerância enquanto expressões constitucionalmente incompatíveis com a liberdade de manifestação do pensamento, e de certeza de que sem um Poder Judiciário independente e forte, sem juízes independentes e sem imprensa livre não há democracia.”
Vivemos um momento de radicalismos tão extremados à direita que suas palavras soam bem vindas e nos levam a esquecer como chegamos a esse ponto. Por essa razão, é imprescindível recordar o que disse, no inverno de 2018, Alysson Mascaro, professor da faculdade de direito do Largo São Francisco, a propósito da crise brasileira e da sobredeterminação jurídica:
“A crise brasileira presente tem determinação econômica – com correlata repercussão política – e, por sobredeterminação, o direito. É no campo jurídico que se vem assentando o imediato da decisão institucional e, mesmo, da condução da governança política atual, na medida da proeminência obtida pelo poder judiciário, que sagra procedimentos, criminaliza, prende e protege suspeitos, conhece e desconhece situações e fatos, procrastina e acelera feitos, abala seletivamente partidos, empresas e governos.” (50)
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Para Mascaro, a novidade não é a participação dos membros do sistema de justiça na manutenção da dominação de classe, mas sua atuação como ponta de lança na execução da tarefa golpista de perseguir determinados dirigentes políticos e empresariais:
“A conduzir a crise brasileira contemporânea, o direito. Não se trata de um agente novo nem de uma mudança de sua incumbência, pois o direito modelou a alma política brasileira ao menos desde o Imprério e a República Velha e é, desde sempre, responsável por garantir a exploração capitalista e a propriedade ao já proprietário, bem como por reprimir os indesejáveis, da escravidão até o atual direito penal. (…) Se o golpe de 1964 é representado pelo domínio imediato dos militares, o de 2016 tem à testa o direito. Do mesmo modo, o direito foi a retaguarda do golpe de 1964; os militares, a retaguarda do atual.” (52)
A Operação Lava Jato, para Mascaro, demonstra com clareza a elevação do grau de poder do mundo jurídico:
“Casos como o da Operação Lava Jato alteram a projeção do impacto decisório de alguns juízes, membros do Ministérios Público e policiais federais. Trata-se de uma mudança de grau do poder do mundo jurídico: antes decidia a vida dos desgraçados de sempre de uma sociedade exploratória e dominadora, no caso, pobres, negros, periféricos, aqueles sem acesso às articulações sociais com os dominantes; agora, decide também contra os membros selecionados e indesejados do mundo político e contra empresas nacionais e estatais contrárias a um dinâmica geral do interesse de frações do capital que dá as bases a partir das quais determinam sua prática e seu horizonte de mundo.” (56)
Mais adiante em seu discurso, Rosa Weber revela seu sonho para o sociedade brasileira:
“Meu desejo-esperança é que nas próximas comemorações tenhamos avançado na conquista do que a nossa Constituição aponta, em seu artigo 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil– a construção de uma sociedade livre, justa e solidária -a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.”
A justiça, para Mascaro, age contrariamente àquilo que Weber afirma ser seu sonho:
“Vive-se hoje no Brasil um golpe. Não se busque oniricamente o restabelecimento da ordem jurídica. O republicanismo, a legalidade e a democracia não são golpeados só de vez em quando: o Estado e o direito são o golpe. São a forma social pela qual o povo não toma o poder nem a condução de seus afazeres produtivos e suas posssibilidades econômicas diretamente nas mãos.” (66)
Continua ele:
“O poder judiciário ganha evidência no contexto de bloqueio a possíveis pautas progressistas hauridas dos próprios princípios constitucionais. Começando por temas dos costumes – casamento, aborto, homossexualidade, feminismo – que têm galvanizado a sociedade de maneira conservadora, alcançam-se as grandes questões política e econômica – intervenção estatal. Limitação do capital, controle do poder financeiro, democratização dos meios de comunicação, direitos sociais, juros, orçamento do Estado. (…) Por ativismo judicial indesejado acusar-se-á somente a hermenêutica mais avançada sobre os princípios constiticionais. As possibilidades interpretativas progressistas serão denunciadas.” (177/178)
A recém empossada presidenta alinha os pressupostos para a independência real dos humanos:
“Sabemos que a evolução da humanidade se dá em devir permanente, em processo dialético, em atualização necessária frente ao que a história apresenta. A independência real pressupõe desenvolvimento econômico, trabalho digno, fortalecimento das instituições, inclusão
social, valorização da ciência, educação e também cultura. Não esqueçamos a arte que, sempre necessária, é luz que dissipa as trevas, é paixão, emoção, beleza e, sobretudo, é liberdade.”
Ao que, Mascaro possivelmente contraporia:
“As lutas transformadoras não podem deixar de lado nem apenas tangenciar a crítica ao direito e à ideologia jurídica”. (61)
* Os trechos atribuídos a Alysson Leandro Mascaro foram transcritos de seu livro Crise e Golpe, Boitempo, 2018.
Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia
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“Palavras são palavras, nada mais que palavras”já dizia um comediante. Somente a fala tornou possível a mentira. Se todos fôssemos telepatas a mentira não existiria porque, na telepatia, a intenção do emitente chega antes da verbalização, assim, nada poderia ser escondido. Mas a maior parte da humanidade não se contentaria em viver na verdade, especialmente quando conhece o benefício imediato da mentira. Podemos fazer discursos bonitos, promessas idôneas ou mirabolantes sem nenhum compromisso firme de cumpri-los. O importante é ter mais credibilidade no que se promete do que no que se faz. Assim são as leis, assim é a política, assim são as instituições, assim é a mídia. A justiça, um ideal humano e senso genético presente em tudo que vive, vista na natureza como força compensatória de ação e reação, para o ser humano é benefício possível aos privilegiados: é para quem pode e não para quem precisa. Afinal, cada um abdica de parte de seu direito pessoal em favor do direito comum para tornar possível a vida em sociedade, onde quem pode o mais pode o menos. O judiciário é o fiel da balança, podendo dar mais ou menos justiça ao cidadão, na proporção de suas posses (dele) e não de suas necessidades , ou ainda, no interesse da manutenção das próprias instituições enquanto o poder da hora.