O enterro de Tião Nunes

nassif:

informo do enterro do tião nunes. ontem, às 5 da tarde. um sossego para os leitores e amigos dele.

no

http://www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdEdicao=1698IdColunaEdicao=12017

Fui enterrado às cinco da tarde

Por Tião Nunes

Começo destruindo um mito: não existe eternidade. Entre as cinco horas da tarde de ontem e as cinco da manhã de hoje decorreram, dentro de meu túmulo, exatamente 12 horas, conforme verifiquei no relógio de pulso. Como? Se enxergo no escuro? Mas é claro. Ou você acha que morto não tem poderes sobre-humanos? Nada tendo acontecido entre ontem e hoje, posso afirmar que vivi uma eternidade. Agora que começa a clarear, conforme minha alma acaba de informar, já que está do lado de fora, pairando acima de meu corpo, sinto enorme alegria por estar morto. Ah, e vou logo destruindo outro mito: é bobagem dizer que a alma, logo depois da morte, vai pra longe do corpo. Vai nada. Ela fica ali, bestando, não sei quanto tempo, já que ainda sou defunto fresco, mas logo saberei e terei o máximo prazer em contar pra vocês, pobres viventes.

PAPO DE VERMES
 Como é óbvio, eu nada tinha pra fazer, exceto ficar ali, esperando o tempo passar. Nada mal, pois sempre fui preguiçoso. Um de meus grandes prazeres era ficar deitado na grama, com um talo de capim na boca, vendo as nuvens se transformarem, em cima de minha cabeça, em animais irreais, fantásticos, quiméricos. Só quem nunca foi preguiçoso desconhece como esses momentos podem ser deliciosos.

Enquanto divagava, ouvi vozes estridentes, mas claras, que com minha sapiência recém-adquirida decifrei imediatamente. Eram os vermes que me transformariam em adubo, que chegavam uniformizados e prontos a iniciar sua delicada – e para eles deliciosa – tarefa. Pra você ver como as delícias da vida variam conforme quem se delicia. Só que os vermes em questão eram também filósofos, de modo que se puseram a filosofar, enquanto me examinavam como cirurgiões e repartiam entre si os trabalhos e os órgãos de meu corpo.
Disse um deles, comprido, esbranquiçado, de dentes afiados:

– Quem diria que esse punhado de esterco foi escritor um dia. Era até metido a sebo, embora seus confrades o considerassem um tanto atoleimado e fora dos padrões mínimos do que se chama um autor de sucesso.

Disse outro, gorducho e amarronzado, com dezenas de perninhas finas:
– Na vida dos humanos é sempre assim. Todos se acham os tais enquanto vivos, vivendo às turras. Depois de mortos, babau! Não sobra nada.

Meteu a colher no mingau do papo-furado um terceiro, pequenininho:
O pior de tudo é que ele se considerava socialista-anarquista-utopista, vejam se pode uma coisa dessas, sem pé nem cabeça.

PAPO DE DEFUNTO
Imediatamente saí em minha defesa, já que mortos podem perfeitamente conversar com vermes. E não só com vermes, mas também com estrelas, árvores, pedras, oceanos, furacões, desertos, enfim, com tudo.

– E o que é que tem de errado na minha profissão de fé, posso saber?
Ao que o verme pequenininho respondeu:
– Mas senhor defunto, isso de socialismo já está completamente fora de moda, não se usa mais, nem em ferro-velho, topa-tudo ou lixão.

Antes que eu pudesse me defender, o verme comprido acrescentou:
– E além do mais, escritor. Ora, quanta pretensão. Escritor do quê, meu falecido senhor? De bulas? Reclames? Poesias lacrimosas e novelas sentimentais?

Fui também atacado pelo terceiro verme, o gorducho:
– Fosse o que fosse, agora é só um defunto fresco, com sua alma em volta, mas já de saco cheio e doida pra se mandar. Melhor calar a boca e deixar que a gente comece o banquete, que já demora.

Irritado com tanta conversa fiada, passei ao ataque:
– Pois saibam vocês, seus vermes nojentos, que fui escritor sim, e até que elogiado por umas tantas autoridades literárias, se bem que nem todas. E também fui, e ainda sou, socialista-anarquista-utopista, com muito orgulho. E se não compreendem o que isso significa, troco em miúdos, de modo que suas cabecinhas ocas de verme alcancem toda a grandeza de minha crença.

Embora um coro de vaias tentasse me interromper, não me calei.
– Sabem por que me considero socialista? Pelo mesmo motivo que vocês, aí à espera do banquete, dividem irmãmente o meu corpo, sem discussão e sem que um tire mais proveito de minhas carnes que o outro. Isso é socialismo, entenderam?

Notei que os vermes, um tanto amuados, tinham compreendido, a ponto de ficaram em silêncio e cabisbaixos.

Aproveitando o silêncio, continuei:
– Sou ainda anarquista, porque tenho clara preferência pela autogestão, ou seja, que as comunidades se organizem em parcelas mínimas, e que cada uma faça por si mesma todo o trabalho e atenda às suas necessidades. Dessa maneira, seria o mundo inteiro formado não de países e conflitos, mas de conivência e paz. Como vocês mesmos, vermes, se unindo numa pequena comunidade para me utilizarem em comum, beneficiando a todos, e até à natureza, que de alguma coisa será dona.

Mais silenciosos ainda ficaram os vermes, entreolhando-se pensativos. Como não diziam nada, fui em frente:

– E utopista, sabem por quê? Simplesmente porque acho impossível que os homens – notem que não me refiro agora a vocês – alcancem algum dia a sabedoria necessária para se irmanarem a tal ponto. São egoístas demais, individualistas em excesso, ignorantes e oportunistas, mesmo quando usam belas palavras. Quanto a vocês, vejo que posso imaginar aqui uma sociedade socialista-anarquista, sem nada de utopista, porque vocês atingiram um grau de solidariedade e coletivismo impossível entre humanos. Portanto, façam bom proveito de mim, e bom apetite.

Concluído o discurso, calei-me. Silenciosos, os vermes se aproximaram de meu corpo, com suas ferramentas de trabalho. Lá em cima, esvoaçando, minha alma aplaudiu demoradamente e, mandando-me um beijo, voou para o céu. 

Luis Nassif

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