A curiosa discussão sobre o relativismo da democracia, por Luís Nassif

O caso Assange mostra que democracia é uma conceito absoluto, mas a americana é relativa em relação à liberdade de expressão.

Ricardo Stuckert

É curioso o rigor dos acadêmicos com conceitos. A mais recente discussão foi em torno de declarações de Lula, afirmando que democracia é um conceito relativo.

Imediatamente, os guerreiros conceituais se colocaram em campo, discordando: não há relativismo no conceito de democracia. Ou o país é uma democracia, ou não é.

O máximo que se permitem é que existem países com democracias mais perfeitas e menos imperfeitas. Ou seja, o conceito não é relativo. Relativas são as definições de países democratas. O que, convenhamos, é de um preciosismo hilário.

Um parêntesis: independente de estarem corretas ou não, as declarações de Lula são gasolina na fogueira do discurso anti-lulista, em um país em que até conselhos de participação são vistos como castrismo, chavismo, bolivarianismo ou outro ismo qualquer.

Primeiro, vamos ao conceito de democracia:

  1. A democracia é um sistema político no qual o poder é exercido pelo povo ou em seu nome, geralmente por meio de eleições livres e justas. 
  2. É baseada em princípios fundamentais, como a participação popular, a igualdade de direitos e a proteção das liberdades individuais.
  3. Princípios como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de associação e a liberdade de religião são essenciais para o funcionamento saudável de uma democracia. 
  4. Os cidadãos têm o direito de expressar suas opiniões, debater ideias, formar partidos políticos e organizações civis, e praticar sua religião de acordo com sua própria consciência.
  5. A democracia também enfatiza a proteção das minorias e a inclusão social. Todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos e oportunidades, independentemente de sua origem étnica, religião, gênero ou qualquer outra característica pessoal. A igualdade perante a lei é um princípio central da democracia.
  6. Além disso, a democracia pressupõe a existência de um sistema de governança transparente e responsável. Os governantes devem prestar contas aos cidadãos por suas ações e decisões, e os mecanismos de controle e equilíbrio devem estar em vigor para evitar abusos de poder.

Uma brilhante lista de conceitos imutáveis. Vamos às análises de casos:

Nos Estados Unidos, berço da democracia ocidental, as eleições são influenciadas fundamentalmente pelos grandes financiadores, que dominam os dois partidos, o Republicano e o Democrata. Junto à opinião pública, os interesses econômicos são bancados pelos grandes veículos de mídia, associados ao grande capital.

Logo, a democracia é imutável, mas a democracia americana desobedece o item (2), que menciona igualdade de direitos..

O caso Assange mostra que democracia é uma conceito absoluto, mas a americana é relativa em relação ao item (3), que fala da liberdade de expressão.

Nos EUA, moradores negros têm três vezes mais chance de serem mortos pela polícia do que moradores brancos. Em algumas cidades, como Minneapolis morrem 28 mais negros que brancos. Logo, a democracia americana não obedece o item (5), de proteção de minorias.

Vamos analisar outro ângulo: os custos para formar um filho na Universidade nos Estados Unidos.

As mensalidades variam entre as instituições e programas de estudo. De acordo com dados do College Board para o ano acadêmico 2020-2021, a média das mensalidades e taxas anuais em universidades privadas sem fins lucrativos foi de cerca de US$ 36.880 (R$ 184 mil), enquanto em universidades públicas para estudantes residentes no estado foi de cerca de US$ 10.560 (R$ 52.800) e para estudantes não residentes no estado foi de cerca de US$ 27.020 (R$ 135 mil). Além das mensalidades, os custos de manutenção dos alunos chega a US$ 17.987 (R$ 90 mil).

E aí, a democracia americana atropelou o item (5), que diz que todos os cidadãos devem ter o mesmo direito e oportunidades.

Se descermos abaixo da linha do Equador, o jogo fica imensamente mais pesado.

Vamos ao papel da Constituição, de acordo com os teóricos:

  1. Limitação do poder do governo: Ela estabelece a separação de poderes entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, garantindo um sistema de freios e contrapesos que evita a concentração excessiva de poder em uma única autoridade.
  2. Proteção dos direitos fundamentais: A Constituição reconhece e protege os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. 
  3. Estabelecimento de um sistema de governo democrático: A Constituição estabelece os princípios e procedimentos para a realização de eleições livres e justas, permitindo que os cidadãos exerçam seu direito de escolher seus representantes. 
  4. Definição das responsabilidades e deveres do governo: A Constituição estabelece as responsabilidades e deveres do governo em relação aos cidadãos. Isso inclui a proteção da segurança e do bem-estar dos cidadãos, a promoção do bem comum, a prestação de serviços públicos, a administração da justiça, entre outras responsabilidades.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, garantidor maior da Constituição, eliminou direitos trabalhistas (considerados anacrônicos) e não colocou nenhum direito trabalhista moderno em seu lugar. Permitiu um retrocesso nos direitos.

No entanto, ele deveria obedecer ao princípio do não-retrocesso:

O princípio de não-retrocesso, também conhecido como princípio da vedação ao retrocesso social, significa que os avanços já conquistados em relação aos direitos fundamentais não devem ser revertidos ou retrocedidos. Em outras palavras, uma vez garantido um determinado direito ou benefício social, não se deve permitir que ele seja retirado ou diminuído sem justificativa adequada.

No STF, com exceção do ex-Ministro Ricardo Lewandowski e de Luiz Edson Fachin, houve retrocessos de toda ordem. Se o principal garantidor da democracia, o STF, não pratica um princípio fundamental, significa que a democracia no Brasil é relativa?

Existem eleições no Brasil e na Venezuela. Nas eleições de 2018 no Brasil, o STF impediu que o candidato favorito, Lula, concorresse à presidência. Na Venezuela, o regime de Maduro proibiu a candidatura de Maria Corina Machado.

Como fica o conceito de democracia? O Brasil é uma democracia e a Venezuela uma ditadura? Ou ambos são ditaduras?

Luis Nassif

7 Comentários

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  1. Se começarmos pela origem, a democracia na Grecia antiga começou relativa, pois na época, 2 terços dos habiteantes da Grécia eram escravos, portanto, não eram contemplados na democracia. Se cosiderarmos, que a liberadade das mulheres gregas, estavam sujeitas aos seus maridos democratas, o grau de relatividade aumenta. Para que um país seja considerado minimamente democrático, não basta considerar os aspectos formais, faz-se necessário que ele contemple o seu funcionamento real, sem o que, teremos democracia do faz de conta. Mesmo considerando as falhas gritantes nas democracias pelo mundo afora, por mais limitada que seja a democracia, precisamos buscar o seu aperfeicionamento buscando ampliar as liberdades alcançadas e diminuir as desigualdade que imperam em todos os paises do mundo, mesmo nos mais desenvolvidos, além da luta constante contra retrocessos, que atualmente tem deixado o mundo aflito.

  2. é uma democracia mas torturam opositores em um território tomado de um minúsculo país-ilha , afastados entre si por uma centenas de milhas nauticas, sendo que as ordens mortais partem na velocidade da luz para matar seres humanos em território inimigo estrangeiro, sem permitirem que holofotes e drones registrem provas.

  3. Em relação à democracia nos Estados Unidos é importante ressaltar também que naquele país os cidadãos não elegem diretamente o presidente. São eleições indiretas onde os cidadãos votam em delegados que elegem a presidência. Na penúltima eleição Hillary Clinton teve mais votos populares do que Trump, mas este é que foi eleito. Além disso até hoje está em vigor naquele país o tal Patriot Act, criado logo depois dos atentados do 11 de setembro, que limita muitas das liberdades, autorizando o governo a estabelecer vigilância sobre os cidadãos.

  4. Não só na expressão , caro Nassif , na Matemática também.
    Nas Eleições norte americanas , Hillary Clinton teve mais votos que Trump,
    mas Trump foi declarado vencedor .
    Julian Assange foi preso e condenado , por ter dito a mais pura verdade , que países
    ditos ” democráticos” o condenaram à prisão perpétua !!!
    A Democracia não é só relativa , é também conivente com os interesses do ” capital”
    de todo o sempre.

  5. A democracia é um conceito relativo sim, enquanto no tempo há mudanças de conceito desde a Grécia antiga, assim como o conceito de esquerda e direita desde a revolução francesa. Não sendo uma ciência exata vai sofrer mudanças de interpretação e adaptações de acordo com a evolução da civilização. Se tomarmos o cerne do conceito de democracia, que seria a participação popular nas decisões que atingem a todos, ou seja na administração da coisa pública (governo), quanto mais participação nas decisões do governo, mais democrático seria um governo. Para isso são necessários mecanismos de inserção da população nos trâmites decisórios que podem ser simplesmente representação por parlamentares ou participação direta por conselhos e até plebiscitos. Mas a democracia não seria só a participação nas decisões, também é a abrangência das ações de governo que beneficiam a população, a fiscalização dessas ações. Para isso precisa respeito as minorias, imprensa livre e honesta (imprensa manipuladora não deve ser aceita em democracias), liberdade de expressão e pensamento (não inclui aqui crimes). Um país em que milhões ainda passam fome, quase metade não possuem saneamento básico, onde o dinheiro dos impostos são usados, não em benefício do povo (olha a democracia aí) mas para privilégios de uma pequena classe de abastados, incluindo aqui os poderes públicos. Um país onde os juízes supremos comem lagosta paga pelos contribuintes enquanto estes passam fome. Um país onde os representantes do povo vão a hospitais caros e renomados pagos pelos contribuintes enquanto estes morrem em filas gigantescas em hospitais públicos com um péssimo atendimento (quando atendido). Um país em que os representantes andam de carros blindados com motoristas e seguranças pagos pelo povo e estes se espremem em ônibus lotados e ameaçados não só pelos bandidos mas pelos agentes que o deveriam proteger. Um país assim não pode ser chamado de democracia. Um país assim não tem uma democracia, nem relativa, nem um nível muito baixo de relatividade. Um país assim é uma máquina de moer o povo, arrancar até a última gota de suor, de sofrimento. Não somos uma democracia só porque temos eleição e votamos nos representantes, estes que comem lagostas, andam de carros com motoristas e seguranças, vão a hospitais caros, enquanto o povo passa fome, não tem acesso a saneamento e nem hospitais e sofrem com a violência de todos os lados. Nem podemos chamar de democracia relativa.

    1. Mais curiosa é a reação da mídia à resposta de Lula a um jornalista claramente desprovido de condições para entrevistar um PR. Enquanto os jornalistas tratarem o debate público como algo restrito a eles, ditos formadores de opinião, não sairmeos dessa armadilha que a extrema direita e o neoliberalismo impuseram a este pobre país sem instrumentos de participação popular.

  6. Excelente artigo. A discussão midiática sobre a fala de Lula virou um campeonato de lacração e linchamento, hipócrita como de costume. Ademais, os mosquitos de sempre saem em busca dos holofotes à disposição. Logo, nada mais justo do que revidar com um pouco de inseticida.

    Os tais “acadêmicos” (de carnaval?) parecem ainda acreditar em um tipo ideal weberiano de “democracia” (ao reduzi-la a uma grandeza escalar, unidimensional, em que qualquer espécime pode ser subsumido como se mais “perfeito” ou “imperfeito” em relação ao “tipo”), passando recibo de que não foram além da Introdução à Sociologia. Ou se fazem de idiotas.

    Ignoram discussões mais refinadas, cognitivamente vetoriais/multidimensionais, politicamente multipolares, como se existisse um único paradigma “ideal” de democracia, presos ainda a uma visão universalista e hegemônica ocidental das relações internacionais.

    (Qual o modelo? O norte-americano, de colégio eleitoral desproporcional, bipartidarismo hermético, bicameralismo disfuncional, sistema anacrônico de votação e totalização, Suprema Corte partidarizada, um complexo industrial-militar entranhado no Estado e SuperPACs em que o poder econômico deita e rola? De redes sociais com algoritmos opacos e tráfico de dados politicamente instrumentalizáveis, a la Cambridge Analytica? Hahahaha)

    Como se diria no Direito, mero jus sperniandi de americanófilos. Não dá para levar a sério um debate assim, que já começa intelectualmente desonesto e instrumentalizado com fins políticos, pinçando frases e as descontextualizando. E registre-se, como sempre, a midiona com o discurso pega-trouxa do “certo x errado”, da suposta existência de verdades absolutas, objetivas, em questões intrinsecamente subjetivas.

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