Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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O fim do pensamento autônomo e o declínio da experiência, por Michel Aires de Souza Dias

Nas sociedades modernas, o aparato técnico adquiriu um tal poder que os indivíduos foram anulados, enquanto subjetividade autônoma.

O fim do pensamento autônomo e o declínio da experiência: um diagnóstico contemporâneo [1]

por Michel Aires de Souza Dias[2]

A preocupação de Adorno com o processo formativo na  sociedade  capitalista  percorre  toda  a  sua  obra.  Ao analisar o processo formativo no mundo  contemporâneo,  ele  percebeu  que  as  pessoas  são  formadas  pela  sociedade  através  de  várias  instâncias  mediadoras,  de  tal  maneira  que  tudo  absorvem  e  aceitam,  em  termos  dessa  configuração  alienada.  Desse modo,  “[…]  a  formação  dos  sujeitos  se  confunde  cada  vez  mais  com  um  adestramento, com uma adaptação aos mecanismos que regulam a produção e  que  se  disseminam  para  todo  o  âmbito  da  vida.”  (MAIA,  2009,  p.  47).  No ensaio “Teoria da Semicultura”, Adorno (2005) chegou à conclusão de que a formação cultural no mundo moderno se degenerou, convertendo-se em semiformação, entendida por ele como uma espécie de pseudocultura, cuja característica é ser unidimensional e limitada. A semiformação é uma formação definida a priori, a qual se tornou a forma dominante da consciência, transformando-se  em  semiformação  socializada,  sob  a  determinação  da  indústria cultural (MAAR, 2003).

A cultura de massa, planejada e desenvolvida pela indústria cultural, que produz a semicultura, renegou os valores transcendentes da literatura, da arte, da música, que reivindicavam liberdade, igualdade, felicidade e uma vida melhor para os indivíduos. Ao renegar esses valores, ela produziu novos modelos ideais de vida, como a beleza, o corpo, a família, as qualidades da alma  e  a  riqueza:  “Eis  aqui  o  terrível  mundo  dos  modelos  ideais  de  uma  vida  saudável,  dando  aos  homens  uma  imagem  falsa  do  que  seja  a  vida  de  verdade.”  (ADORNO,  1995,  p.  84).  Esses  ideais  renovadores  foram  veiculados em filmes, romances, novelas, músicas e propagandas. Em lugar dos valores transcendentes de emancipação para todos, a indústria cultural respondeu com ideais de prazer, consumo e satisfação individual.

Para  disseminar  os  valores  do  mundo  industrial  capitalista,  toda  existência foi forçada a passar pelo filtro da indústria cultural. Quanto maior a perfeição  com  que  a  indústria  cultural  duplica  a  realidade,  mais  fácil  ela  cria  a  ilusão  de  que  o  mundo  exterior  é  o  prolongamento  sem  ruptura  do  mundo  que  se  descobre  no  filme  (ADORNO;  HORKHEIMER,  1985).  A imaginação, a  autonomia  e  a  espontaneidade  do  consumidor  cultural  são  paralisadas pela própria constituição dos produtos culturais homogeneizados. Em  consequência  disso,  a  semiformação  tornou-se  a  forma  da  consciência,  nos indivíduos.

Em  uma  realidade  fundamentada  na  reificação,  onde  todas  as  coisas  se  nivelam  pela  forma  da  mercadoria,  as  pessoas  perdem  sua  autonomia,  aceitando com maior ou menor resistência aquilo que a existência lhes impõe. Com  isso,  os  homens  não  são  mais  aptos  à  experiência,  pois,  entre  eles  e  a  realidade, se interpõem os controles técnicos, os quais impedem uma verdadeira consciência da realidade. Para Adorno (1995, p. 150), “[…] a constituição da aptidão à experiência consistiria essencialmente na conscientização.”

Contudo, nas sociedades modernas, o aparato técnico adquiriu um tal poder que os indivíduos foram anulados, enquanto subjetividade autônoma. A formação  da  consciência  é  constituída  no  contexto  de  uma  sociedade  administrada,  que  enclausura  os  indivíduos,  disciplinando-os  aos  padrões  de  pensamento  e  comportamento  socialmente  estabelecidos.  A  sociedade  administrada se define pela união entre o capital e as instituições democráticas, buscando uma maior racionalidade técnica e administrativa, a fim de se obter uma  maior  organização,  controle  e  planejamento  dos  indivíduos.  Como Adorno (1995, p. 43) bem avaliou, se as pessoas querem viver em sociedade, “[…]  nada  lhe  resta  senão  se  adaptar  à  situação  existente,  se  conformar;  precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia.”

 Adorno,  em  suas  obras,  teve  uma  grande  influência  de  seu  amigo  e  parceiro  Walter  Benjamin,  que  refletiu  sobre  a  perda  da  experiência  no  mundo moderno. Para Benjamin (1994), com o desenvolvimento da técnica, surgiu uma nova forma de miséria espiritual. A experiência formativa, a qual possibilitou a emancipação  da  classe  burguesa,  deu  lugar  a  uma  experiência  empobrecida  de  valores  e  ideias  que  se  difundiram  entre  as  pessoas,  como  a  renovação  da  astrologia  e  da  ioga,  da  Christian  Science  e  da  quiromancia,  do  vegetarianismo  e  da  gnose,  da  escolástica  e  do  espiritualismo.  Seguindo  as análises de Benjamim sobre a perda da experiência, Adorno (1985, p. 36) concluiu que, “[…] quanto mais o processo da autoconservação é assegurado pela  divisão  burguesa  do  trabalho,  tanto  mais  ele  força  a  autoalienação  dos  indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica.”  Os  indivíduos,  ao  reduzirem  sua  existência  ao  consumo  e  aos  entretenimentos   idiotizados   da   indústria   cultural,   deixaram   que   sua   interioridade fosse modelada pela produção de mercadoria. Dessa maneira, a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de tal modo que tudo absorvem e aceitam, nos  termos  dessa  configuração  alienada (ADORNO, 1995).

No mundo contemporâneo,  a  organização  social  continua  sendo  heterônoma,  isto  é,  nenhuma  pessoa  pode  existir  na  sociedade  capitalista  realmente  conforme  suas  próprias  paixões  e  desejos.  Na medida em que o mundo se nivelou pela forma  da  mercadoria,  o  ego  ajustado  à  realidade  aprendeu a ordem e a subordinação, por meio do aparato técnico e econômico, que a tudo engloba. Nesse sentido, “[…] os fenômenos da alienação baseiam-se na estrutura social.” (ADORNO, 1995, p. 148). A adaptação, o conformismo, a ausência de  reflexão,  os  comportamentos  convencionais  são  características  dessa alienação.

Tal  como  Kant  compreendeu,  em  sua  época,  a  menoridade  como  a  condição de tutela, causada pela preguiça e covardia do homem em se servir de  seu  próprio  entendimento,  Adorno  interpretou  a  menoridade,  em  nossa  época,  em  termos  de  perda  da  experiência.  Para  ele  (1995),  os  homens  não  são  mais  aptos  à  experiência,  pois  eles  interpõem  entre  si  mesmos  e  aquilo  a  ser  experimentado  aquelas  camadas  estereotipadas  de  modelos,  formas  de  pensar  e  agir  socialmente  determinadas.  Adorno pensa,  sobretudo,  no  papel  desempenhado pela técnica na formação ou deformação da consciência e do inconsciente. O problema mais grave estaria ligado à própria constituição da consciência,  que  é  formada  no  contexto  de  uma  sociedade  reificada,  o  qual  desvincula o pensamento de seus conteúdos formativos (PETRY, 2015).

No mundo administrado,   a   indústria   cultural   tem   um   papel   fundamental na perda da experiência, porque é ela que dissemina os produtos padronizados da semicultura. Ela impede o esclarecimento e a conscientização sobre a realidade, uma vez que impossibilita a reflexão crítica, ao disseminar os produtos culturais pasteurizados. Com isso, torna a consciência incapaz de se dirigir apropriadamente à realidade. Poderíamos afirmar, portanto, que a semiformação se caracteriza pelo modo distorcido pela qual os indivíduos experimentam a cultura, visto que a tomam de forma imediata, sem que seu conteúdo possa  ser  apropriado  pelo  indivíduo.  A  semiformação  se  revela,  assim, como uma forma de bloqueio para a realização de uma experiência, na medida em que impede que o sujeito mantenha uma relação viva com a cultura. Ela faz com que ele estabeleça uma ligação parcial com os produtos a que tem acesso, o que acaba por contribuir com a reificação da consciência (PETRY, 2015).

Em  uma  sociedade  totalmente  reificada,  fundamentada  no  consumo  e  nos  entretenimentos  padronizados,  a  semiformação  impede  a  experiência,  justamente porque as pessoas odeiam o que é diferente, o que não é padrão, o que não faz parte do que está estabelecido. Em um debate com o educador alemão Helmut Becker, Adorno nos oferece um exemplo contundente da perda da experiência. Ele fala sobre um número incontável de indivíduos, sobretudo na fase da adolescência, que possuem grande aversão à educação: “Elas querem se desvencilhar da consciência e do peso de experiências primárias, porque isso só dificulta sua orientação.” (ADORNO, 1995, p. 149). Na adolescência, já se desenvolve o  tipo  de  indivíduo  que  questiona:  por  que  estudar,  se  posso  ouvir música ou assistir à televisão? Desse modo, as pessoas odeiam o que é diferenciado, o que não é moldado, porque são excluídos do mesmo e, também, porque, se o aceitassem, isso dificultaria a vida cotidiana (ADORNO, 1995).

Em  outro  ensaio,  “A  filosofia  e  os  professores”,Adorno  detectou  a  perda  da  experiência  na  falta  de  autonomia  dos  indivíduos.  Ao avaliar a  contratação  de  professores  no  Estado  de  Hessen,  na  Alemanha,  ele  estimulou  muitos  candidatos  a  colocar  suas  próprias  opiniões,  em  seus  trabalhos.  Contudo, a maioria acabava tendo  dúvidas  sobre  sua  própria  autonomia.  Para tudo deveria haver hábitos correspondentes,  normas  e  caminhos  já  consolidados.  Em sua opinião, essa relação entre a  ausência  de  reflexão  e  padrões  normativos  era  sinal  de  uma  conformação  ao  que  é  estabelecido, ao que é vigente, mostrando uma maneira de pensar que tem afinidades  com  o  autoritarismo.  Era por  isso,  segundo  ele,  que  o  nazismo  ainda sobrevivia, não porque as pessoas acreditavam em suas doutrinas, mas porque eram determinadas por conformações formais de pensamento, como o  convencionalismo,  o  realismo  exagerado  e  a  disposição  de  se  adaptar  ao  vigente:  “Na  incapacidade  do  pensamento  em  se  impor,  já  se  encontra  à  espreita  o  potencial  de  enquadramento  e  subordinação  a  uma  autoridade  qualquer, do mesmo modo como hoje, concreta e voluntariamente, a gente se curva ao existente.” (ADORNO, 1995, p. 71).

A  perda  da  experiência  também  pode  ser  observada  no  próprio  âmbito da reflexão filosófica. Adorno (1995) percebeu que a ocupação com a filosofia, a qual deveria possibilitar uma maior independência de pensamento, conduzindo os indivíduos à autonomia, tornou-se o oposto disso. Na medida em  que  a  filosofia  se  submeteu  às  regras  do  conhecimento  científico,  ela  abandonou  sua  capacidade  de  reflexão.  Esse  fato  é  o  resultado  das  próprias  normas  científicas.  A  ciência,  que  nunca  aceitou  nada  sem  verificação  e  comprovação,  significando  liberdade  e  emancipação  em  relação  a  todos  os  dogmas,  crenças  e  ideologias,  atualmente  se  tornou  uma  nova  forma  de  heteronomia. É o que Adorno (1995, p. 70) mostra, nesta passagem:  “As  pessoas  acreditam  estar  salvas  quando  se  orientam  conforme  regras  científicas,  obedecem  a  um  ritual  científico,  se  cercam  de  ciência.  A  aprovação  científica  converte-se  em  substituto  da  reflexão  intelectual  do  fatual,  de  que  a  ciência  deveria  se  constituir.  A  couraça  oculta  a  ferida. A  consciência  coisificada  coloca  como  procedimento  entre  si  própria  e  a  experiência viva”.

Adorno também avaliou que a falta de aptidão à experiência está ligada à perda da consciência histórica. O que é característico da sociedade capitalista é a deterioração da memória, já  que  a  sociedade  burguesa  está  subordinada,  de  um  modo  universal,  à  lei  da  troca.  As relações de  intercâmbio  material  entre  os  homens  são,  por  sua  própria  natureza,  atemporais,  assim  como  a  racionalidade técnica, as mercadorias e o trabalho. A produção e a reprodução do capital liquidam o tempo e toda experiência autêntica. O resultado disso é que, na vida cotidiana, as pessoas ficam eternamente presas ao trabalho, aos divertimentos e ao consumo. O mundo se reproduz à imagem de si mesmo, como um eterno presente. A perda da memória torna-se uma lei objetiva do desenvolvimento do  modo  de  produção  capitalista.  Adorno  (1985,  p.  190)  ressalta: “A reificação é um esquecimento.”

A  barbárie  de  Auschwitz  é  a  prova  mais  contundente  da  perda  da  experiência.  Os  indivíduos  com  uma  consciência  reificada  são  incapazes  de  fazer experiências intelectuais. Eles não são capazes de refletir de modo crítico e  autônomo  sobre  a  realidade.  Nesse sentido,  Auschwitz  faz  parte  de  um  processo social objetivo, de uma regressão associada ao progresso, um processo de  coisificação  que  impede  a  experiência  formativa,  substituindo-a  por  uma  reflexão  afirmativa,  autoconservadora,  da  situação  vigente.  Auschwitz  não  representa  apenas  o  genocídio,  num  campo  de  extermínio,  mas  simboliza  a  tragédia da formação, na sociedade capitalista (MAAR, 1995).

Referências

ADORNO, T.W. Progresso. Lua Nova, n. 27, p. 217-236, dez. 1992.ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, T. W. Teoria da Semicultura. Revista Primeira Versão, ano IV, n. 191, maio/ago. p. 1-20, 2005.

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas:Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119.

MAAR, W. L. À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, T.   W.   Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. p. 11-49.

MAAR, W. L. Adorno, Semiformação e Educação. Educação e Sociedade, v. 24, n. 83, p. 459-476, 2003.

PETRY, F. Experiência e Formação em Theodor W. Adorno. Educação e Filosofia, v. 29, n. 57, p. 455- 88, jan./jun. 2015.


[1] O presente texto faz parte do artigo “Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno”, publicado na Revista TRANS/FORM/AÇÃO (UNESP), v.5, n°4, Out/Dez 2022.

[2] Doutor em Educação pela USP.

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Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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  1. Parabéns ao Professor Michel Aires pelo texto “O fim do pensamento autônomo e o declínio da experiência”. Faço um exercício reflexivo sobre o meu trabalho, minha vida e aquilo que querem que eu “seja”, o que “sou” ou o que me “tornei”.

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