Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Finitude e solidão, por Rui Daher

Com a finitude, como já disse, sempre convivi. Fui estabelecendo etapas e sempre me surpreendendo em superá-las. Farei 78 em agosto.

Finitude e solidão

por Rui Daher

O título desta crônica, para muitos escritores, parece se encerrar em si mesma. Conhecemos vidas, mortes e suas “final last words”. Não as creio verdadeiras. A derradeira centelha de lucidez estará guardada para expressar o sofrimento que foi juntar letras, encarreirar palavras, uni-las em frases, contar histórias. 

Digo isso fatal. Como o são a incerteza da data da morte e a certeza de sua consecução. Também não qualifico. Bons e maus escritores somente saberão disso por seus leitores. Se não publicam, se guardam para si, como os caderninhos que, antigamente, manuscrevíamos, em letras bem treinadas, para esconder nossas dedicações e aflições amorosas,

De mim, sei que a primeira etapa dura pouco mais de sete décadas. Suficientemente alfabetizado, o padre Martinho, meu professor de Português, no Colégio de São Bento, em São Paulo, notou e me informou que minhas escrevinha(nças), (dices), (turas), enfim, aquelas palavras que acompanhavam os sonhos que brincavam e se confundiam em minha cabeça, insanos entre fábulas e realidades, a cada passo, para cruzar o Largo Santa Efigênia ou Ifigênia (até hoje, a Cúria Metropolitana não me esclareceu a grafia correta da santa), onde morava, até o Largo de São Bento, onde fingia estudar.

Tanto que, muitas vezes, sonhando diferentes fábulas, desgraças, paixões (a atriz austríaca/norte-americana Hedy Lamarr (1914-2000), escafedia-me pela Rua Direita, sem saber que nunca mais na vida seguiria essa trilha. Se procurasse, não encontraria uma Rua Esquerda, então …

Mais tarde, pesquisei, descobri ser a ideologia mais importante que as ruas, e nunca mais percorri outra trilha que não fosse à esquerda.  Afinal, dentro daquele mosteiro de jardins internos maravilhosos, ensinavam-me a olhar e cuidar dos próximos. Por que fora daquelas muralhas, debaixo daqueles sinos, eu oraria para ter riquezas só para mim?

Não, Dom Martinho, não segui sua orientação, não me tornei escritor. As sendas até a finitude me levaram a outras ocupações, nunca, porém, longe das letras. Fosse por pobres incursões ou pretenciosas invasões cedidas por amigos que, digamos, consideravam minhas duas penas consideráveis – a da escrita e das dores.

Assim como a batina do esguio Martinho foi uma marca (posso expor minhas notas em português e literatura), o fato de, em 2004, ter sido classificado num concurso de crônicas sobre a cidade de São Paulo, instituído pela Prefeitura (Marta Suplicy), algumas monografias sobre agropecuária e seus negócios, e o livro de crônicas “Dominó de Botequim” (Edição do Autor, 2016), atestam que tentei.

Hoje em dia, caro instrutor beneditino, da mesma forma que não me tornei escritor, sei o senhor não ter-se tornado Papa. Merecíamos? Acho que sim.

Não sei se ainda se está entre nós (eu calculo teria uns 120 anos) ou tem rezado missas dominicais para a turma que constitui o Conselho Consultivo Celestial do Dominó de Botequim. Acredito que estando diante do Todo Poderoso, os mais ateus de nossos membros não teriam coragem de negar presença aos cativantes rituais.

Com a finitude, como já disse, sempre convivi. Fui estabelecendo etapas e sempre me surpreendendo em superá-las. Farei 78 em agosto. Do jeito que vão as coisas, penso 80 um limite razoável. Vamos ver.

Uma pitada política: ter sobrevivido aos quatro anos do governo Bolsonaro deveriam ser adicionados à data de nossas mortes.

A solidão é diferente. Quebra-se em intervalos menores, disformes, quebradiços, mesmo as voluntárias. No início da vida ou em seu decorrer, você poderá escolher se estará só, muito só, ou bem acompanhado em sua finitude.

Depende do tamanho da família que decide estabelecer, dos acidentes fatais que as ruas e os próximos lhe facultam, ou do seu gênio gregário ou não.

Então, uma miríade, em gêneros opostos, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, primos, amigos, bem, vocês que têm sabem. Quanto menos deles, sobrar-lhes-á retalhos de solidão.

Foi assim, quando fui, na lembrança, recordando a primeira filha quando foi morar no exterior e seu séquito de gatos; nesta semana, a segunda, do meio. Trouxe-se seu séquito de cachorros para se despedirem dos avós. O barulhinho das correntinhas e medalhas ficarão, para sempre, gravado nos ouvidos dos dois velhinhos que aqui ficaram … esperando um dia aquelas lambidas, de olhos pedintes, voltarem.

Tem mais um. Decidido ser o pai alcoólatra e por isso, hoje em dia, prejudicado na mobilidade e vivendo de fisioterapia, há dois anos cortou relações comigo. É um excelente artista visual e também mora longe dos velhinhos que habitam este casarão, em cada cômodo uma solidão.

Inté, sei lá.

Rui Daher – administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

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Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

1 Comentário

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  1. Prezado Rui

    Respeito a Finitude e Solidão.
    Mas nesta era de fake news, prefiro acreditar que somos eternos, mesmo que seja fake…
    Aprendi que tudo é ilusão (fake?)! A Maya dos Hindus…
    Então, a finitude deve ser ilusão e a solitude (será que eu sei o que é isso?) talvez nos ajude a superar a solidão…
    Não sei me expressar como os coach atuais.
    Prefiro as galhofas e quetais…
    Abraços

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